A propósito, recordo-me de uma história que se passou na tropa. Eu assentei praça num quartel, que agora já acabou, que era a Artilharia nº 3, na Rua da Artilharia nº 1. Só estranhei quando assentei praça, de manhã, ver tanta cabeça pelada, tudo com o cabelo rapado. Eram 2000 e tal homens, porque era um quartel-escola, onde iam tirar cursos os oficiais. E aquilo tinha para ali soldados... Havia uma caserna com 200 e tal homens, chamavam-lhe a bateria dos adidos. Era só daqueles tipos, tenentes e alferes, vinham lá fazer o curso até major e até capitão. E levavam um impedido, porque era do tempo que ainda havia cavalos. Eu já não tive instrução de cavalos, já era de motorizada. Mas era os cavalos para os senhores irem passear. Já naquele tempo iam passear e iam aqueles impedidos, a gente até chamava de sopeiros, tinham um boné, para tratar dos cavalos aos donos e para lhes engraxar as botas. Então como assentaram praça muitos soldados na mesma armação, era uma espécie de beliche com três camas. A minha por acaso calhou ser a terceira, na mesma armação. Quando tocava alvorada, levantava a cabeça e só via carecas. Foi só o que eu estranhei, de resto já lá estava há uns quatro anos. Fui para lá com 16. Mas eu vi lá gente pior que eu, eu vi lá muitos a dizerem assim:
- Às cinco horas, volta a instrução.
A gente ia para a caserna até vir a hora da refeição, e eu via lá tipos encostados assim à caixa, ao pé da cama, tristes, com as lágrimas nos olhos:
- “Eh, pá, que é que tens?”
Muitos diziam que nunca tinham visto um comboio senão quando foram para a tropa. Eu acredito que eu se calhar se estivesse na aldeia também só o via quando fosse. E havia outros malandros como o Diabo! Havia de tudo. Era muita gente. Fora os que lá estavam já velhos. Havia tipos muito mais acanhados do que eu. Eu já lá estava em Lisboa, já conhecia alguns postos. Depois ao fim-de-semana formava e:
- “Só sai quem souber já os postos todos.”
Porque havia quem vinha para a rua e fazia continência a bombeiros, à polícia. E a polícia não tem continência, só tem de uns para os outros e os Bombeiros também não. Mas viam gajos com divisas... Depois diziam que era a vergonha do Exército. Eu já conhecia aquilo tudo. Por acaso até tive um irmão meu que tinha sido lá tropa primeiro. Conhecia aquilo tudo. Eu por acaso fui castigado uma vez por andar lá na paródia. Cortaram-me a dispensa e durante uma semana não pude sair. Era uma tristeza, que eu tinha lá os meus irmãos, e à noite saía, íamos dar lá uma volta. Mas aquilo era duro, duro.
Lembro-me do primeiro pão que lá deram, um quarto de pão. O padeiro é que era um tipo porreiro. Deixava aquele pão muito duro. Levei para a caserna para uma caixa, onde guardava a roupa. Era uma caixa de madeira. Esteve uma semana dentro da caixa. Parecia um bocado de cimento. Aquilo já de si era muito escuro. Era feito lá daquelas coisas. Aquilo estava rijo. Isso foi no Verão e havia lá um tipo, que era algarvio. Os algarvios falam muito. A gente chamava-lhe o “Fala-Barato”. Ele estava mesmo à minha frente e, na altura, a gente não tinha camisola. Andávamos de tronco nu e o gajo tinha o corpo muito branco, parecia um pano branquinho. O gajo não se calava, e eu com a malandrice, levo o quarto do pão para cima. Ele via-se muito bem, estava escuro mas ele falava, falava, e eu atirei o pão, mas não atirei para o magoar. Bateu-lhe no peito, tão rijo que ele estava que andou com uma manchazita preta. Ele assim:
- “Ó, querias-me matar, pá?”
A gente depois levava aquilo tudo para a paródia.
- Ó pá, foi na paródia!
Mas eu nunca vi uma coisa tão dura como aquele pão que davam. Hoje já se come bem. Eu já disse aos meus netos:
- Eh pá, vocês vão para o Exército, se não tiverem outra coisa ao menos agora já se come bem, já ganham e isto está mal de empregos.