“Segurávamos o porco por maior que ele fosse”

Toda a gente criava um porco. Até havia quem criasse dois. Os meus avós criaram sempre dois e o meu pai, mais tarde, também. O dia em que se matava o porco, era um dia de união da família. O meu pai - e quem diz o meu pai diz os outros todos - convidava os irmãos e irmãs da mulher, juntava-se tudo para a matança do porco, para se comer. Chamava-se cá a isso a burzigada. Cá, davam-lhe esse nome.

Havia alguns que o matavam só na parte da tarde a seguir ao meio-dia. Em casa dos meus avós e do meu pai era sempre de manhã. Juntava-se a família de manhã, matava-se o porco chamuscava-se, tudo isso. Ainda hoje gostava de fazer. Gostava de criar um porco e juntar uma irmã que tenho e o cunhado, os meus filhos e os meus sobrinhos:

-Vá! Vamos matar o porco!

Antigamente, a gente segurava-o. Apanhava-o três pessoas. Por maior que fosse o porco, duas pessoas e a pessoa para o matar chegava bem. Não era preciso mais. Eu com um tio meu segurávamos o porco por maior que ele fosse. Não fugia! Tinha força, mas não fugia. Eu deitando-me em cima do banco, tanto ele fazia espernear como não. Dali é que já não saía mais, senão quando a gente o tirasse morto. Eu gostava de passar por aquilo.

Era chamuscado com carquejas que se iam buscar aí do mato. Não era com maçaricos. Chamuscava-se, daí rapava-se com uma faca, lavava-se bem lavadinho, tudo isso. Até a carne tinha outro gosto, outro cheiro, de ser chamuscada com o mato. As carnes cá eram muito boas. A carne de porco era boa. Era mesmo gostosa. Acabava-se de chamuscar, de o limpar, de o lavar, pendurava-se, punha-se o sangue que ele tinha botado, cozido com um pão. E tinto. Ao fim, ao meio-dia, havia o almoço. Já se começava a comer do porco. Ao meio-dia e à noite. Ainda hoje tenho saudades disso. Ainda hoje gostava de criar um porco só por causa disso. Faz-me mal a carne de porco, mas tenho pena dessa tradição.

Dava para fazer chouriços, dava para fazer presunto e tudo isso. Era salgado na salgadeira. Não havia arca congeladora. Não havia cá luz. Salgava-o, comia um bocadinho todo o ano e não se morria por causa da carne de porco estar salgada. Hoje morre-se por causa da carne de porco não estar fresca. Não percebo isso. Naquela altura, era assim que era conservada.

Cada um matava o porco e fazia aquelas partes que era para fazer as chouriças. Havia isso assim. Ao outro dia era desmanchado. Como a gente dizia, era posto numa arca com sal, os presuntos eram esfregados com sal, eram postos na arca, ficava ali tudo encamadinho e daí ia-se comendo um bocadinho cada dia.

Era regrado para todo o ano. Deixava-se um bocadinho de um presunto do pé para cozer na sopa no dia em que se matava o outro ao outro ano. Para a sopa ficar melhor. Hoje em dia dizem que isso faz muito mal. Naquela altura, fazia bem. Não percebo. Antes, iam ali até aos 90 e tais. Agora andam alguns, mas andam aí encostados a um pau de qualquer forma e feitio.