Quase toda a gente, quando acabava a escola, saía. Ou continuava a estudar - caso os pais pudessem -, para Arganil ou outro sítio qualquer, ou se dedicava mesmo ao campo - o que não era fácil, porque isto é um trabalho muito duro - ou ia embora. De resto não havia saída possível. Trabalho, aqui, não havia como há hoje, e ninguém podia estar à boa-vida. Hoje, reparam-se casas e já se paga. Naquela altura, não era assim. As pessoas que aqui andaram ganhavam pouquíssimo ou quase nada. Por isso, fugiam todas. Iam-se todas embora. Sempre que havia a oportunidade, as pessoas, que estavam em Lisboa, levavam outras. De Lisboa, as pessoas migram para outro país qualquer. Nós, aqui, emigrar para Lisboa já era óptimo. Já era muito bom. Há até pessoas que foram para Lisboa e nunca mais voltaram ao Piódão. Nunca mais. Venderam as coisas todas que tinham aqui e nunca mais vieram.
Fiz os 12 anos em Lisboa. Quando fui, já estava lá o meu pai há uns três ou quatro anos. As minhas duas irmãs mais velhas também já tinham ido antes de mim. Ficaram cá os outros todos. A seguir ao 25 de Abril lá se conseguiram arranjar condições e foi toda a gente para Lisboa, de uma virada. Já não foram às prestações. Foi logo o comboio todo. Na altura, havia uma firma de cafés que era a Vilarinho & Sobrinho, onde trabalhavam familiares meus. Um primo levou o meu pai e depois o meu pai levou-me a mim. Não fui para a firma onde ele trabalhava, mas ele arranjou-me. Normalmente, íamos daqui para as mercearias - por acaso ainda é o ramo em que continuo a trabalhar.
Adaptar-me, foi muito complicado. Era muito difícil sobreviver. Aqui, era um nível, ali, era uma coisa mais avançada. Também não tínhamos grandes amigos. Só tínhamos inimigos. As pessoas tentavam desajudar, não era ajudar. E continuávamos a fazer as mesmas coisas. A nível de trabalho, éramos explorados na mesma. Eles faziam questão de vir aqui buscar as pessoas, porque sabiam que já estavam habituadas a determinado sofrimento. Quando chegavam a Lisboa, trabalhavam que nem uns mouros e comiam muito pouco ou nada. Não tinham grandes exigências. Se aqui tínhamos de trabalhar no campo, chegávamos lá:
- “Então, tu vieste do campo? Lá, tinhas que trabalhar no campo?”
Tinha que fazer os trabalhos piores na mesma. Quando cheguei lá com 11 anos, fui para uma loja fazer os trabalhos piores, que os outros não queriam fazer. Pesar batatas, levar os carregos mais pesados, levar botijas de gás ao quarto e quinto andares... O que os outros não queriam fazer, empurravam para os mais fracotes. E não nos podíamos negar, senão perdíamos o trabalho. Ainda não tínhamos agilidade para arranjar outro rapidamente. Enfiaram-nos aquele e tínhamos de abraçar aquilo durante uns tempos. Pelo menos, enquanto não desenvolvêssemos mais um pouco. Tínhamos uma vantagem: a alimentação era um bocadinho diferente. Isso e a visão daquilo que é Lisboa já nos dava um certo ânimo. De resto, continuávamos a ser uns sofredores, pelo menos, durante os três ou quatro anos, que levássemos a desenvolver. Se ao fim de dois ou três anos conseguíssemos arranjar um emprego melhor ou alguém que gostasse de nós, ajudava-nos. Senão... As pessoas que nos acolhiam já sabiam que era mão-de-obra barata que estava ali para explorar. Não há dúvida nenhuma. E quem disser o contrário está enganado.