Quando vim para os Pardieiros, já tinha aprendido a fazer colheres. As colheres de pau começaram assim: um começou a fazer, depois começaram outros a aprender com ele.
- “Ah! Também quero aprender! Também quero fazer colheres!”
A pessoa ia para o pé do colhereiro que estava a trabalhar, sentava-se e via como ele fazia. Aprendia a ver. Depois ia também fazer. Chegámos a cá estar 30 colhereiros, na terra. Agora, não há cá ninguém. Nos Pardieiros, não há rapazes nenhuns que digam assim:
- “Eu quero aprender a fazer colheres.”
Mas a gente, naquele tempo, aprendia uns com os outros. Ia para o pé deles, levava as minhas ferramentazinhas, via como eles machadavam, como eles estavam a fazer e eu fazia a mesma coisa. Mas, claro, as colheres de um aprendiz nunca rendem tanto como as outras que são já bem feitas. Ainda não tinha a prática. Por isso, recebia sempre menos 10 tostõezitos. Naquele tempo eram tostões, 5 tostões, 2 tostões, 3 tostões... Recebíamos sempre menos do que os que as levavam bem feitas. Às vezes, o homem que me ensinou era assim para mim:
- “Não cortes por aí! Vê se estás a estragar a colher! Não cortes por aí, corta por outro lado!”
Lá ia eu cortar por outro lado. Mas depois ainda ia fazer, se calhar, pior do que estava a fazer. Eu estraguei muito pinheiro. Muito, muito, muito. Elas do pinheiro saíam boas. Eu, depois, é que estragava tudo. Foi difícil aprender. Só depois de uns tantos anos, é que já recebia o mesmo preço dos outros. Diziam-me:
- “Pronto, já fazes como fulano. Fazes igual, já recebes tanto como ele.”
O homem que me ensinou a fazer colheres chamava-se Zé da Rita. Ui! Tinha um mau feitio! Levei muita porrada, muitas vezes, com as colheres talhadas. A machada na torga. Ele era um homem que fumava e bebia muito e queria que eu lhe fosse comprar todos os dias aguardente para ele beber. Mas o meu ganhito era poucochinho. Não era nada! Muitos dias nem chegava para levar para casa. Nem para comer toda a semana chegava, quanto mais para andar a pagar aguardente. E ele:
- “Vais!”
E pumba! Uma ripada na testa. Ficava a cabeça a zunir daquela portada com aquelas colheres verdes. Quando são talhadas, as colheres ficam muito pesadas. Depois de talhadas ainda se lhe tira muita madeira. Aquilo era pesado, fazia doer a cabeça como um raio!
- “Não vais buscar a aguardente? Levas uma na cabeça!”
Pumba! Na cabeça! Apanhei muitas, mas lá estive. Quando estava ali na Mata da Margaraça, dava-lhe muito. Nós tínhamos muita fartura de renovo e eu dava-lhe muito! Cestas de batatas, alqueires de milho, feijão. Às vezes, a mulher dele, coitada, ia berrar com ele:
- “Que estás tu a fazer? Ó malandro! O rapaz faz quanto pode, ó malandro!”
- “Anda uma pessoa aqui sem beber nada, e ele não quer lá ir! Ainda ontem recebeu uma féria e não quer lá ir?”
Ele sabia que o dinheiro era preciso para outra coisa. Porque havia de estar a gastá-lo? Não chegava para nada. O dinheirito naquele tempo era um tostãozito apertado na mão e mesmo assim não chegava a nada. Não é como hoje. A gente hoje gasta dez ou gasta 20 e fica com outro tanto, mas naquele tempo não era assim.
São precisas quatro ferramentas para se fazer colheres de pau. Primeiro, uma machada, que é para talhar; depois, uma faca que é para as fazer; uma legre, que é para as escavar por dentro, para as legrar, e uma enxó. São quatro ferramentas para fazer uma colher de pau. Depois, botávamos um pedaço de madeira à nossa frente e truca, truca, truca! Toca a trabalhar, toca a fazer. Dá muito trabalho. É uma arte. Para quem vê, parece que é fácil.
- “Ah! Eu também fazia isto!”
Não fazia, não... É uma coisa que se corta por muito fino. Muito fininho. Se a gente carregasse mais num golpe, já não ia acertar o outro com aquele. Já ficava com a beiça para o lado e não tinha jeito nenhum. Nem todos têm esperteza para fazer a colher de pau. E magoava o peito. A gente tinha uma correia que lançava ao peito. Do lado esquerdo, segurava a correia e nas pernas é que se fazia a colher. É custoso. É mais custoso que muita gente pensa.
Eu fazia colheres de dia, de noute e quando tinha uma hora vaga. Quando não fazia ia para a fazenda. A gente tinha cabras, tinha ovelhas, tinha coelhos, tinha galinhas, tinha essa coisa toda. E tínhamos de cultivar para esses animais todos comerem. Como nem todos os dias há trabalho na fazenda, agarrava-me às colheres. Muitas vezes, cheguei a fazer colheres de pau à noute para não vir para a rua, para ninguém saber que eu fazia aquilo. E também para de dia ir aproveitar os trabalhos da fazenda. Arranquei uma tábua do sobrado e seguia para baixo para a loja onde fazia colheres de pau. Estava lá até à meia-noute, uma hora. Chama a gente fazer serão. A tristeza também não era grande coisa, mas a alegria também não era nenhuma. Ali a trabalhar até à meia-noute, uma hora dentro de uma loja fechada. Não era grande alegria, porque estava a perder o nosso sono. Mas a precisão de ganhar o dinheiro era tanta que tinha que ser assim.
Depois, em estando os galos a cantar, levantava-me do cepo, tornava a subir e ia para a Mata, com um machado às costas, cortar um pinheiro. Para começar a machadar ao outro dia logo de manhã cedo. Chegava aqui, serrava o pinheiro à medida. Com uma medida de pau, medíamos e serrávamos com um serrote. Não havia motores como há agora. Nunca vi um motor, senão agora. Naquele tempo eram serrotes. Duas pessoas a serrar, um do lado, outro do outro. Serrávamos, rachávamos a madeira, cascávamo-la com uma machada e depois rachávamos à medida com um maço de pau. Batíamos no lombo da machada, aquilo abria para o lado. Sempre até acabar o reboco. E começávamos truca, truca, a talhar até à noute. Nos dias pequenitos, chegava-se à noute e não tinha nenhuma feita. Zás, para uma loja até umas tantas a trabalhar. Ao outro dia, ainda a manhã lá vinha - não sei adonde era - já eu estava a pé para ir trabalhar. Às vezes, tinha que estar sentado à espera que aclarasse a manhã, porque não se via o caminho. Mas, se fôssemos muito tarde, quando viéssemos já não fazíamos o trabalho que tínhamos a fazer. Quando eram aqueles dias pequenitos. Se a gente não fizesse o trabalho todo, no fim da semana, quando íamos levar as colheres ao depósito, não podia contar o dinheirito. E a gente sabia que ele era preciso, porque não havia outros recursos, naquele tempo. Não havia uma reformazinha, não havia nada. Era só o suorzito do braço. Tínhamos que regular aquilo para toda a semana. O dinheiro tinha que chegar para toda a semana. Até ao outro domingo, quando lá íamos outra vez levar as colheres para recebermos o tostãozito.
Nós fazíamos colheres para um depósito, para um homem que se chamava Aristides. Éramos alguns 30. Tudo lá levava as colheres. Chegáramos a pontos em que ele tinha lá tantas, tantas, que já não tinha onde botasse as outras que a gente levava:
- “Ó Aristides, posso ir agora com as colheres?”
- “Tenho tanta vontade de vos cá ver como ver um lobo!”
Havia alturas em que ele não podia com tanta colher. Tinha que as armazenar ali. O dinheiro ficava ali empatado até as poderem despachar. Era uma vida muito má. Trabalhávamos toda a semana, de segunda-feira a sábado. Ao domingo, levávamos para aquele depósito, que as vendia para Coimbra, para Lisboa, para o Porto, para onde calhava. Vendia sacas da obra que a gente fazia. A gente levava uma saca de colheres às costas e trazia um “coiselho” no fundo da mão de dinheiro. Uma bagatelita. Não davam nada! Não rendiam nada! Naquele tempo, não era negócio que desse para nada. Era só para remediar. Dava para me governar, para governar a mulher e para criar os filhos. Vendíamos um cento de colheres de pau por 7 escudos e 500. Tínhamos outras mais caritas e outras mais baratas ainda. As pequeninas eram a 25 tostões. Um cento de colheres 25 tostões! E hoje, essas colheres, que custavam 25 tostões, custam 50 ou mais! Ou 60 ou 70. Se eu agora fizesse colheres de pau, nem que as fizesse mal, governava-me, porque estão muito caras. Naquele tempo, não. Não rendiam nada. Mas agora, já não faço colheres. Já vai para dez anos que eu não as faço. A idade já é muita e além disso a reformita chega para viver. Para que é que hei-de andar agora? Trabalhar já trabalhei muito.
A nossa vida era assim, uma miséria. Uma escravidão! Uma vida ruim, mesmo ruim a valer! Uma coisa mesmo louca. Era só trabalhar, trabalhar de dia e de noute. A gente não sabia o que era um domingo, não sabia o que era um dia santo, não sabia nada. Era trabalhar até rebentar!