Eu fui convidada a participar num filme, o “Sangue Vermelho”, porque eles andavam aí à procura de pessoas para participar. Uma velhota para ser avó de uma menina. Nomearam-me a mim.
- “Olha está aí a tia São, que é assim muito engraçada, sabe muitas anedotas e tem muito experiência. É capaz de servir.”
Vieram-me convidar. Na altura disse-lhe que não ia. Mas depois disse:
- Olhe não vou sem pedir autorização ao meu filho.
Já estava viúva. O meu marido já fez 15 anos que morreu. Telefonei ao meu filho e ele disse:
- “Então a mãe vá. Olhe, diga ao Leonardo que vá consigo.”
O Leonardo é um rapaz que era primo dele. Mas eu nunca precisei, graças a Deus. Arranjei ali uma família. Tinha uma rapariga que me vinha cá buscar e trazer à noite, ao cerrar da noite, quando acabasse aquilo. Metiam-me sempre à frente de todos, para eu vir descansar. Eu era a mais idosa. Depois fôramos a Côja, o senhor Pedro pediu para irmos fazer uma demonstração a uma escola.
Fiz o filme mas nem ajustei nada com eles, deram-me o que eles quiseram. Agora ajustam, este prémio e isso... Mas eu não. Fui de livre vontade. Nem sabia se me davam alguma coisa, se não. Mas eu também não sabia que aquilo custava tanto. Eu apareço pouco, é uma coisita aqui e além. Se aparecesse tudo o que eu fiz... O meu papel era trabalhar com um homem que veio de Lisboa, que eu não conhecia, e com a rapariga que era minha neta. Ela veio de Arganil, chama-se Raquel. Trabalhei lá muito, no pouco tempo que lá estive. As filmagens eram todos os dias mas cortavam-nos a fita, volta e meia. Custou-nos muito. Eu ainda regulava, graças a Deus, não é estar-me a gabar. Eles botavam assim uma fita-cola no chão para pôr os pés em cima daquilo, para não arredar um pé, nem para um lado, nem para o outro. Era verdade. Gostei de participar. Mas no último dia já não podia andar em pé. Eram quatro e meia da manhã quando me vieram trazer. Era tudo filmado de noite.
Não sei porque se chama “Sangue Vermelho”. A rapariga, a que fez de minha neta, está até na capa do disco. Está com a boca aberta. Fôramos lá um dia, no fim de ter aquilo acabado, só para gravar a voz. Ela foi lá, abriu a boca o que podia, e gritou muito de alto. Vieram aqui dar uma demonstração mas eu não percebi a história do filme. Lá o senhor Pedro trouxe para aqui um dia um bocadito. Coisa de nada. Foi tudo lá para dentro para ver. Toda a gente disse:
- “Ai não valeu a pena cá vir, foi poucochinho. Foi uma pequenina amostra.”
Era curta metragem, coisa pequena.
O segundo filme foi também em Pardieiros, numa procissão. Vieram cá convidar-me. Não saíam aqui da porta.
- “Há-de ir. E há-de ir. E veja lá.”
E eu dizia que já não estava em condições, que não podia. Eles diziam que não custava nada. Mas custou, porque cortavam a fita muitas vezes. A gente chegava a pontos que já não podia. Mas fui muito bem estimada. A filmagem foi aqui à minha porta a falar aqui com o Manel que também ajudou a realizar aquilo. Eram as mesmas pessoas da Mata. Era o Bruno, o Rui e o outro é Miguel, dos que lá andavam na Mata. Havia também uma rapariga, que está em Côja, que chamam Isabel. Quando me vim embora chorei e fui-me despedir deles. Eles queriam que eu lá comesse, comiam de noite e de dia, coitados. Estavam aí a trabalhar e foram para um barracão ao lado comer. Mas eu não. Estava à rasca para vir para a minha cama. E eles ficaram até de dia a trabalhar. Os primeiros a virem embora fui eu, o que fazia de conta que era meu filho e a rapariga.
No filme, o meu filho andava fugitivo, era mau. Tinha estado preso e andava fugitivo. Depois apareceu e lá fui ter com ele:
- Então tu por aqui a esta hora? O que é que tu andaste a fazer? O que é que tu tens andado a fazer? Que vida é a tua?
Eu assim para ele. Diz ele:
-“Mandaram-me por bom comportamento.”
Digo-lhe eu:
- Ainda bem!
Era assim. As coisas eram assim! Depois perguntei-lhe se ele queria comer. Era como diziam para eu dizer. Tanto que ele aparece até com os braços abertos e a fugir. Parece que vai no ar. Não sei o que ele tinha feito para andar fugido, não sei.
O papel da minha neta era eu a dar-lhe de comer, pão. Andava de galdéria na rua, sem a minha autorização, e eu ia buscá-la. Chamava por ela e depois sentava-a em cima de uma cama, assim de má. Tinha aí uns 14 anos. Já era crescida.
No filme usei uma roupa que era minha. A que levei o primeiro dia foi até ao fim. Os mesmos sapatos, a mesma roupa. Nem quiseram coisas a luzir, nem nada. Era uma saínha plissada que ali tenho no guarda-fato, bonita até. Lavei-a umas poucas de vezes. A casa onde se trabalhava, estava cheia de barro, de terra nas paredes.
A minha personagem morria no fim, era o meu filho a matar-me com uma machadada. Mas não tive medo. Eu vi bem que aquilo era tudo fogo de vista. Arranjaram um machado. Assim um machado grande de esponja metido num pau, encabado como os outros machados. Trouxeram sangue de Côja. E depois fingia que dava uma machadada. Aquilo não doía, porque é mole. E depois saía aquele sangue ou uma tinta qualquer. Quando aquilo acabou, disparou a máquina, fez um barulho parecia um trovão. Parecia que tremeu a casa. Foi bonito. Depois tudo se agarrou a mim, a dar-me um beijinho e a dizerem que era uma estrela. Chorei. Nunca isto me pode esquecer.
Se eu fosse nova não gostava de ser actriz mas ainda ia participar numa coisa qualquer, se pudesse, porque foi uma experiência boa que tive. Lidei com muita gente e boa.
Agradeci quando vim embora. Disseram que ficou a estimação e o respeito, porque foi com muito respeito. Eu também disse para o senhor que organizou o filme:
- Olhe senhor, eu posso ir mas veja lá se vocês fazem coisas que depois não gosto de me ver, não vou. Que eu sou uma pessoa séria, honesta, não quero cá brincadeiras. Sou uma mulher viúva.
- “Não. Vá. Esteja descansada que não há nada de especial.”
E não, não houve. Eles quando abusam das pessoas já sabem onde vão ter. Na família ficaram todos contentes. O meu filho quando falam em mim, em qualquer lado, fica todo contente. É verdade. Fui a única da aldeia, com esta idade, que fez isto. Ainda ganhei algum. Ainda me deram alguma coisita. Pensam que eu andava lá por ganhar uma fortuna ou por me fazer grande. Não.