Estivéramos em Almada três anos. No fim de três anos, a minha mãe veio para cá outra vez. Fui aqui criada, mas por pouco tempo. O meu pai continuou em Almada mais ou menos por quatro anos. Foi um tempo muito difícil.
O que é, a minha irmã mais velha mandava muitas coisas à minha mãe. Já estava casada com um senhor da Carapinha. Todos os meses mandava uma - chamavam - tarifa. Havia aqueles canastrões e ela mandava mercearia, mandava pão, mandava bacalhau, mandava tudo para se comer depois. Estivéramos cá eu mais a minha mãe e as minhas irmãs. Depois, foram-se casando. Duas casaram na Moura, outra casou com um senhor do Barrigueiro, outra com um de cá e foi tudo assim.
Nós tratávamos da fazenda. Cultivávamos milho, feijão, batatas, couves... Mas não vendíamos, era só para casa. Tínhamos animais. Sempre tivéramos. No tempo da minha mãe, era cabras e ovelhas. Trabalhávamos na casa e na floresta. Mas na floresta, não era sempre. Era, às vezes, 15 dias, depois estava parada outros 15 dias e trabalhava-se na fazenda. Às vezes, ia ajudar os outros para ganhar 5 escudos e de comer, quase de sol a sol. Não era complicado. Eu gosto de trabalhar na fazenda. Gosto mesmo. Depois, o que a gente tratava ia para os caseiros, “ricalhões” que havia aí, para eles venderem. Aquilo era medido ao alqueire e era tudo a meio. O que sobrava era dividido ao punhado.
Quando andava na fazenda, tínhamos enxadas, ancinhos e sachos para sachar o milho. Era só. Para servir de adubo era só o esterco. Não se usava químico. Agora é que já pomos, mas, antigamente, era só o esterco. De pesticida, não se punha nada. Mas tínhamos pragas. Quando o escaravelho começou de aparecer, eram catados. Agora é que se põe produto para matar o escaravelho, para matar o piolho, essas coisas todas. Para o piolho, arranjávamos borralho e púnhamos nos feijoeiros, quando eles começavam de aparecer. Era assim. Não havia cá produtos. E resultava. Mas não havia tanta praga como há agora. Agora é que há uma bicheza.
Também brincávamos. Éramos muitos unidos naquele tempo, rapazes e raparigas. Quando era no tempo da Quaresma, cá não se dançava, era proibido. Acabando o Entrudo, o Carnaval, até à Páscoa não havia mais nada e a gente ajuntávamo-nos todos aí num - chama a gente - solheiro, onde secavam o milho. Jogávamos ao lenço, jogávamos ao raminho, ao anelzinho. Era tudo assim.
Nós íamos aí para umas festas e os rapazes defendiam-nos sempre. Olá! Houvesse lá algum que se metesse com a gente. Levavam que contar.
Depois, era assim: se os rapazes chegassem todos para as raparigas, a gente dançava só com eles. Mas se as raparigas fossem mais que os rapazes e os rapazes não chegavam para todas, dançavam à vez.
A minha mãe ainda me meteu na escola, mas depois tirou-me para ir guardar duas meninas numa terra chamada Monte Redondo. É aqui perto, ao pé de Arganil e de Folques. Tinha 9 anitos, mais ou menos. As minhas irmãs andavam todas a servir, também. Foi um senhor que morava aqui na Relva Velha e que casou lá que me veio cá buscar. A senhora dele teve duas meninas e eu fui para lá. Era gente que podia. Tinha duas criadas. Estava lá eu a guardar as meninas e estava lá outra criada para fazer o resto. Aquilo era fácil, era só embanar os berços. Eram bebezinhos. Nessa altura, não se usavam fraldas. Isso é agora. Eram panos, trapos. Rasgavam-nos e punham. Coitadinhos, andavam sempre assados. A gente tinha que lavar sempre o rabinho. A vida, antigamente, não é como agora. Estive lá pouco tempo, um ano e tal até as miúdas cresceram.
Depois, voltei para Lisboa para o pé da minha irmã mais velha. Eu, praticamente, tive duas mães: a minha mãe e a minha irmã mais velha que me criou. Ela vendia na praça. Tinha que fazer o comer para o meu pai. Ainda era um bocado longe, mas eu, pequenita, é que lá ia levar-lhe o comer.
Era diferente ser lá criança. A gente ia brincar lá para aquelas quintas. Antigamente, Almada era quintas. Nós íamos à chicha. Eu e os rapazes. Eu ainda era pior que os rapazes. Eu, a minha irmã chegada a mim e uma outra rapariga, também. Íamos àquelas figueiras, que davam aqueles figos muito grandes. Naquelas azinhagas, aquilo era figueiras dum lado, era figueiras do outro, era damasqueiros... Os donos tinham lá aquilo para irem vender para a praça e a gente íamos lá. Dizíamos nós que íamos à chicha rapinar os figos para comermos. O homem, quando dava lá conta da gente, era à pedrada. Nessa altura, gostava mais de estar lá, porque vivia lá com aquelas vizinhas e vizinhos.
A relação com os meus pais era boa. O meu pai tinha uma coisa: quando nos estava a mandar, a gente tínhamos que ir logo de caminho. Senão, com o que ele tivesse à mão é que andava. Só convivíamos em casa, porque, antigamente, não havia onde ir. A taberna era só para os homens, não era para as mulheres. Lá em Lisboa, era a mesma coisa. Era só em casa e no quintal.
Estive lá até aos 14, 15 anos e depois voltei para cá. Andei a trabalhar aí na floresta. A minha vida faz um romance grande!