Em Lisboa arranjei trabalho numa alfaiataria e lá estive ainda uns cinco meses. Estavam lá um rapaz e seis costureiras. O dono da alfaiataria estava doente e o médico mandou-o ir para o Algarve, que ele era de lá. Mandou-o ir para lá estar uns dias a ver se arribava de saúde, pelas mudanças de ares e tudo isso. Depois o homem para lá foi e eu fiquei. Eu fui para o lugar do rapaz que lá estava e o rapaz passou à mesa de corte. Passados 15 dias, aparece lá a viúva com um telegrama para lá ir, que ele que já tinha falecido. Ela lá foi fazer o funeral. Chegou a Lisboa, mandou acabar a obra que estava entre mãos, já começada, e mandou-nos embora, a todos. Fechou a porta. Ainda dei mais umas voltas, não consegui arranjar trabalho. Então, comprei uma máquina. Os rapazes da minha terra, que havia lá muita gente, naquela altura, diziam:
- “Eh pá, arranja uma máquina e um quarto aí e começa a trabalhar!”
Meteu-se aquilo na cabeça e comprei uma máquina. Mas nem tinha dinheiro para a máquina nem coisa nenhuma. Fui ter com uma pessoa que eu sabia que tinha dinheiro. Se ele me emprestava.
- “Então não empresto? Sim senhor, empresto pois. Quanto é que queres?”
- Olha, ainda não comprei a máquina, mas vou comprá-la. Se não for numa casa, é noutra. Eu vou comprar uma máquina. E depois é que sei o que é preciso e venho buscá-lo.
- “Está bem, pronto, é o que for preciso.”
Comprei a máquina. Ele deu-me o dinheiro e paguei. Comprei um ferro, comprei tesoura, comprei tudo. A máquina custou-me 750 escudos. Não a comprei nova, mas estava em estado novo. Ainda a tenho. Comprei na Rua da Esperança, em Lisboa. E depois arranjei um quarto ao pé dos outros que lá estavam a morar. Havia lá um que ainda era meu conhecido e parente, que era de Malhada Chã. Disse-me logo:
-“Ó Manel, podes vir para aqui tratar da roupa da gente!”
Isto foi em Janeiro. Andei lá a trabalhar e ainda fiz uma data de fatos para gente da terra e do Piódão também. Eram todos conhecidos. Começaram a gostar do meu trabalho. Um dia, aparece-me lá uma carta do meu pai:
- “Sabes que morreu o tio António Pereira - era um alfaiate, tio da minha mulher - agora, estive a conversar com a mulher e está-me a perguntar por ti. Se tu cá estivesses, tinhas muito o que fazer, que ele já não conseguiu fazer. Até podias tomar conta daquele trabalho...”
Meteu-se aquilo na cabeça. Passados poucos dias arranquei, fui embora de Lisboa. Foi no fim de Julho. Deixei a casa e fui para Chãs d'Égua. Esse alfaiate, irmão do pai da minha mulher, não tinha herdeiros. Quando morreu deixou a máquina para a sobrinha. Mas estava muito suja. Eu casei-me no dia 22 de Agosto de 1942 e, no dia de São Miguel, que é o dia 29, desmanchei a cabeça toda, por cima. Não era serralheiro, mas eu já tinha uma visãozita. E aquilo que metesse na cabeça eu tinha de fazer. Se não fazia numa hora, fazia em duas, mas tinha que o fazer, tinha que lhe dar saída. Limpei-a toda bem limpa, meti as peças, botei-as para um alguidar grande, lavei aquilo com petróleo, passei a limpo, depois oleei toda, e comecei a encamar. E a máquina começou boa. Só a lançadeira é que estava um pouco gasta. A lançadeira é onde a gente mete a bobine das linhas. Mete a bobine das linhas, guarda ali e depois aquilo é ligada ao tubo que está em cima da cabeça. Ligam uma coisa com a outra, depois fazem o laço, a própria máquina é que faz o laço. A de baixo com a de cima. A agulha vem abaixo e vem acima, passa, e fica a costura feita. Comecei a trabalhar com ela, foi a minha máquina toda a vida! A que tinha comprado em Lisboa, onde o meu filho trabalhava, era mais fraca um bocadinho. A outra dava mais saída. Quer dizer, cada uma roda no volante, porque, por baixo, dava dois ou três pontos a mais no coser. Ora aquilo, como era de manhã até à noite, quando era noite, já tinha dado mais uns pontos.
Então, comecei a trabalhar em Chãs d'Égua e fiquei-me a escrever com a pessoa que me ensinou. Escrevíamos de vez em quando um ao outro, e ele procurava sempre:
- “Que tal te arranjas?”
Depois escrevi-lhe uma carta e entreguei a uma irmã minha que passava lá ao pé da terra dele. Ela lá lhe chegou à mão. Ele escreveu-me logo uma carta e mandou-a, pelo moleiro, para me entregar. A pedir-me para eu ir imediatamente lá ter com ele. E depois eu fui. Cheguei lá, fez-me lá estar. Ele tinha um calo, um “repisado”, da tesoura de corte, que ele trabalhava muito. Andava com o braço ao peito, e tinha uma festa numa terra chamada Orondo, ao lado. Tinha os fatos lá para aquela festa da Senhora do Carmo.
- “Ó Manel, ficas cá até pelo menos safar estes fatos?”
E a festa era na mesma altura da de Chãs d'Égua. E eu já tinha fatos para fazer. Diz-me ele:
- “Este aqui já está entre mãos, já estão cortados, é só fazer.”
A mulher é que estava sempre na máquina. E duas costureiras ao lado também.
- “Portanto, vamos despachar isto e depois vais então. E fazes outro dia.”
Estive até ao dia das festas. De manhã, ainda fui a Orondo levar os fatos que estavam prontos. Depois cheguei a casa, comi alguma coisa e desandei para Chãs d'Égua. A partir daí, nunca mais saí da minha terra para fora, trabalhar para parte nenhuma. Ele, às vezes, chamava-me. Ainda lá ia acudir a uma enrascada qualquer, passar uma semanita ou qualquer coisa. Mas, felizmente, tive sempre o que fazer, sempre, sempre. Às vezes, quando era assim pela Páscoa, juntavam-se aí aos 20 e aos 30 fatos para fazer. Se não chegava o dia, chegava a noite. Era assim, sempre a trabalhar, constantemente. Criei quatro filhos. Tudo à base da costura.