Eu ajudava os meus pais. Que remédio tinha eu. De pequenino, puto, miudito, comecei a cavar as terras. Aqui, as terras é tudo malhado com uma enxada. Não havia tractores, não havia nada. Nem há agora nem havia naquele tempo. Tinha 6 anos, comecei a guardar cabras. Andei com a cabrada na serra, perto de Sobral de São Miguel. Pertencia à Covilhã. Com a idade de 6 anos e descalço. Andava a guardá-las para elas não fugirem. Nunca perdi nenhuma. Aquilo não se perdia. Andava tudo guardado. Quando havia de ir para a escola andava a guardar as cabras ou a cultivar as terras. De manhã, a gente em lugar de estar a dormir, ia roçar o mato, buscar mato para botar ao rojo dos animais, para fazer o estrume. Com 13 anos, fui a pé daqui para Arganil duas vezes. Era a nossa vida assim.
Quando a gente era puto, era uma côdea de pão rijo de meses, que comia. Agora, é chuchas que dão aos miúdos. No meu tempo, era broa rija embrulhada num trapo! Metiam aquilo na nossa boca, a gente chupava e era bem bom.
Ainda comi uma sardinha dividida por três. No outro tempo, uma sardinha era dividida por três. O que hoje comia a cabeça outra vez comia o rabo e, para outra vez, comia o meio. Ia-se às feiras de Oliveira, a pé, e trazia-se a sardinha. Já naquele tempo, quando eu era miúdo, ainda não havia a feira da Vide. Aquilo não era aos quilos. Era sardinha salgada em caixas. Um cento, dois centos... Vinha com sal. Chegava aqui e lavava. Era lavada, era enfiada numas “fuseiras” dos chapéus, pelos olhos e punha-se em cima do lume para secar. Outros eram nuns cestos de corra. Metiam lá um “carquejo” destes matos no fumo e penduravam-na por cima do lume para enxugar. E ia-se comendo aquilo, regrado para todo o mês. Só ao outro mês é que se ia buscar mais. Mas seca, sequinha, era tão boa. À minha avó, que Deus tem, roubei-lhe tantas sardinhas... Às vezes, quando eu a apanhava pendurada, lá ia eu! Comia-a sem pão, sem nada. Naquele tempo, quando me começo a lembrar, era assim. A sardinha era boa. Agora não. A sardinha agora já não é como naquele tempo.
Lá em casa era um ambiente bom. Foi sempre bom. A casa dos meus pais, ainda assim, foi sempre mais ou menos remediada.
Brincávamos uns com os outros ao que calhava. Às vezes, a mocidade fazia umas brincadeiras. Mas, naquele tempo, não havia vagar de brincar. A malta não tinha tempo para se entreter a jogar. Ainda a gente era putozitos, já nos traziam a trabalhar aí nas terras. Não havia bonecos como agora há. Havia poucos jogos. Os bonecos eram uma corda e um podão ao ombro e ir buscar mato e lenha para queimar à noite. Os bonecos que havia eram esses. Os jogos era o podão e a corda. Era trabalhar e trabalhar. Agarrados a uma enxada a cavar terra. Era o desporto da malta.
Os meus filhos agora não se importam dessa vida. Eu já lhes tenho dito:
- Vocês, agora, não sabem o que é a vida. O que a gente passou no outro tempo...
Eles começam a rir-se para mim. Os gajos ainda riem, por cima. Não acreditam. O meu mais novo não acredita que é verdade aquilo que a gente diz. Eu, às vezes, digo para ele:
- Vocês haviam de saber só metade do que a gente passou no outro tempo.
E os que vieram na minha frente ainda passaram pior que a gente passou. Esses é que passaram a vida negra. Diziam os antigos. Eu não vi.