Quando eu era criança, todos os anos vinha cá. Eu adorava isto. Sempre gostei. Os meus irmãos nem tanto. Vinha passar as férias. Esta mocidade actual não consegue ter noção daquilo que era a vida naquela altura. Nem nesta aldeia. É preciso ver que nós saíamos de Lisboa, do Rossio, às 11 da noite no comboio. Isto, já eu era pequenito, devia ter os meus 6, 7 anos. Talvez menos, talvez 5. Chegava a Coimbra às sete, nove da manhã. Ao meio-dia apanhava a camioneta. Chegava a Vide às 11 da noite e depois vínhamos a pé da Vide para aqui. Eram quatro horas a pé. Era uma verdadeira aventura vir de Lisboa. Mas todos os anos cá vinham. Ainda hoje se vê que há aqui um apego à terra muito grande.
As crianças de Lisboa eram muito diferentes das daqui. Olhando para trás, penso que sim. Lá, a brincadeira era andar a jogar à bola, saltar ao eixo, fazer aqueles jogos da pistola e da malha, jogar à barra... Aqui não. Aqui, era andar aos pardais, andar aos ninhos, ir tomar banho aí para o ribeiro - a água era gelada, mas a pessoa não tinha frio -, andar a partir as canecas aos resineiros, dar uma “palmada” a um queijito ou a um chouriço para fazer um petiscozito... Eram coisas do meio rural. Lá, dá-me impressão que eram brincadeiras do meio citadino.
Os meus avós ainda eram vivos. Da parte do meu pai, da minha avó, não me lembro de rigorosamente nada. Do meu avô, tenho uma ideia muito vaga. Acho que ele cegou ou ficou quase cego. Tenho uma ideia de o ver sentado num banco. Uma coisa muito difusa. Agora, dos meus avós da parte da minha mãe, lembro-me perfeitamente. De eles andarem aí a cavar as terras, de terem os animais. Tinham cabras, tinham ovelhas, tinham galinhas, tinham essa criação. Os porcos maiores eram deles. Tinham sempre dois porcos. Faziam a matança. Era o normal aqui. Agora, na povoação, já não há ninguém com cabras. Ali no Piódão, há uma ou outra pessoa que ainda tem. Mas aqui, já há muitos anos deixaram de ter esses animais domésticos. Sobretudo as cabras, porque criação, penso que ainda há pessoas que têm. Galinhas, sobretudo galinhas.
Era uma família muito grande, com muitos filhos e muitos netos. A minha família era enormíssima. Dá-me impressão que, aqui, nesta povoação, indo bem à raiz, não há aqui pessoa que não seja meu primo. Havia um casal aqui perto que tinha muitos filhos. O pai não conseguia ganhar para todos. Então, o meu avô tomou à conta dele um dos netos. E eu gostava muito dele. A gente chamava-o o Zé Curto. Já faleceu. Ele ia pastar o rebanho, ia regar, ia guardar as cabras e eu andava sempre com ele, porque gostava realmente desta vida do campo.
Era difícil não se gostar do meu avô. Era um homem do campo, mas um bocado bonacheirão. Era muito estimado aqui na terra. Só oiço dizer bem dele. Então, os netos adoravam-no. Eu, pelo menos, adorava o chamado Avô do Canto. Chamava-se assim, porque a casa dele era no canto da povoação. Ele esteve no Brasil e, por conseguinte, tinha já um certo estatuto social aqui neste meio. Era um homem, para a época, muito evoluído, com uma memória, uns horizontes e uma experiência de vida muito grandes. Os outros eram tipo rurais. Pessoas que viviam neste meio. Como eles diziam, e conta aí muito:
- “O mundo é muito grande. Para lá de Pomares ainda há casas”.
Recordo-me que uma vez, uma prima minha foi a Lisboa, chegou ao Terreiro do Paço, olhou para aquilo e disse:
- “Eia, pá! Que poça tão grande!”
Isto não é pejorativo. É a ideia que uma pessoa tem da sociedade e daquilo com que vive. Isso é que é o seu horizonte.
Da minha avó, não tenho assim ideia. Era uma pessoa baixota e muito calada, muito introvertida, ao contrário do meu avô. Lembro-me dela mas não tenho assim grandes recordações. Lembro-me também de ela falecer. Não fui ao funeral. A minha mãe veio, mas eu não vim.
Na altura, gostava muito de vir para aqui. Nem me sentia isolado, até porque gostava de participar. Eu ajudava em todas as tarefas deles. Na altura era miúdo e vinha de Lisboa. Como eles diziam, era “o de Lisboa”:
- “É o de Lisboa, não sabe nada disto, nem é capaz de fazer.”
Mas gostava de ir. Gostava de ir aos currais. Tinha aí um podãozito pequeninito que o meu avô me arranjou. Lá ia eu também. Eles iam até ao alto da serra. Era quase uma hora a pé. Depois, vinham com um molho de mato e de silvas às costas. Não me metiam nisso. Para aquilo, não tinha realmente estrutura.
Gostava de vir para aqui. Em Lisboa, não vivia com o conforto que se tem hoje. Era tudo muito limitado. A vida não era fácil na altura. A única coisa que não tinha cá eram os carros eléctricos. De resto, tinha tudo. Água, a minha avó dizia-me:
- “Olha, vai ao ribeiro de baixo ou vai à mina buscar água.”
E eu lá ia com a cantarita. Gostava. Eram daquelas coisas que gostava de fazer. Ia e trazia a cântara cheia de água. Quando iam fazer a “descamisada”, à noite, aí nos palheiros, eu também ia. Gostava de ver isso. É claro que adormecia. Recordo-me que, uma vez, fizeram uma e eu adormeci. Tiveram que me trazer ao colo, às cavalitas, não sei. Sei que fui para lá a pé e para cá não sei como é que vim.