Aos 20 anos fui para a tropa. Assentei praça no dia 1 de Abril no TREN Auto em Lisboa, que agora é uma universidade. Fui tirar a carta ao CICA 3 a Elvas. Voltei ao TREN Auto, estive na garagem militar. Andei lá de chofer de um General. Depois fui mobilizado para a Índia.
Embarquei a 28 de Dezembro, cheguei lá a 16 de Janeiro. Fui pelo Canal Suez, por ali pelo Porto Said. Fiz lá o meu percurso, era motorista. Ainda sei o primeiro comer que comi quando lá cheguei. Foi bacalhau à Brás. Desembarquei em Mormugão, em Vasco da Gama. Depois fiquei nessa cidade, assim um bocadinho desviado, junto ao aeroporto, na Companhia de Manutenção e Material. Em Mormugão também. Ali era Altomangore).
A 19 de Dezembro, foi quando houve a invasão. A gente tinha várias posições, vários pontos estratégicos em que tínhamos homens e armamento para a defesa. Então mandaram-me lá a um sítio para eles se renderem e para partirem o mais possível o armamento. Era a ordem que havia. Eu fui lá. Quando vinha de regresso a Vasco da Gama, que era a Curtali, fui apanhado por os indianos. Eram sete com o dedo no gatilho em volta de mim e eu com as mãos no ar. Meteram-me dentro do jipe e fizeram-me ir mais uns 100 quilómetros, até Pondá.
Regressei a Vasco da Gama. Trouxe-os, que eles não sabiam conduzir. Quando lá cheguei estavam os meus colegas todos atados. Já os tinham trazido para o estaleiro naval. Estavam todos atados de dez em dez, nas mãos, e assim ficáramos. Também mataram um grupo que estava lá. Ao outro dia à tarde, e a malta sem comer nada, levaram-nos para o campo de concentração. Chegámos ao campo de concentração, que era uma zona que havia lá de armazéns que pertencia lá à tropa que era em Alperqueiros, havia sete carreiras de arame farpado em volta. Os indivíduos que apanharam a gente, os primeiros foram os Sikh's, que são aqueles indivíduos que nunca cortaram o cabelo e a barba na vida deles, que usam um turbante. Estavam assim de 20 em 20 metros com uma metralhadora e gente entrou lá para dentro. Estivemos ali a noite toda em formatura, sem comer nada, para contarem o pessoal. Só levámos a roupa que tínhamos no corpo. Ao outro dia, deram-nos um arroz só cozido na água, sem sal, sem azeite, sem nada. Daí para a frente, o comer era arroz a uma refeição e feijão-frade à outra. Foi no tempo todo que lá estivéramos. Sem sal, sem azeite, sem pão, sem nada. Ali íamos, com uma marmita que eles nos deram e uma colher e comíamos aquilo. Não havia outra coisa, tínhamos que comer. Dormir era no chão. Lembra-me que arranjei lá uma tábua e dormia em cima de uma tábua. Depois de cinco meses parecia que estava a dormir num colchão da Molaflex.
Escolheram cinco motoristas portugueses para conduzir os camiões para levar o pessoal para ir arranjar as pontes. As coisas que se derrubaram, depois tivemos que reconstruir aquilo tudo. E eu, escolheram-me para ir para a Intendência. Um Furriel que era meu amigo foi escolhido para ir buscar os géneros para a gente e para a tropa indiana. Lá é que se fazia o comer e a gente ia buscar ao nosso armazém. Eu ia mais três escoltas, às vezes quatro, o Sargento e o Furriel que falava bem inglês. Íamos buscar lá o comer e tal. Depois comecei a apanhar confiança lá com o indiano, chamava-se Kassam, nunca mais me esquece. Ainda trouxe o endereço, ainda lhe escrevi uma vez, mas nunca mais. Apanhámos confiança com esse, que era o que mandava lá no armazém e com o outro. Eu chegava lá, já me abastecia daquilo que queria e tudo. E como eles nunca beberam nada na vida, é a Lei Seca lá, a gente tinha lá muito vinho que ia daqui, ia lá abria um garrafão dava-lhe a beber, pfuuu! Apanhavam cada “cega”! Comíamos lá às vezes, quando a escolta era boa, que era lá da cor do indiano. Éramos muito amigos. Eu chegava lá, comecei a aprender, a “arranhar” em inglês, sabia o que era as coisas, o nome das cebolas, o nome das batatas, o nome disto, o nome daquilo e chegava lá a aviar-me, digo eu assim:
- Kassam tantos quilos disto, tantos daquilo já levo aqui.
Era assim. Era mesmo amigo dele. Ia buscar os géneros para dar o comer aos portugueses e também trazia o comer para os indianos, lá do armazém. Depois, lá para o campo, para mim e para os meus amigos, trouxe um fogãozito que havia lá. Ligado à luz e lá o tínhamos escondido. Conduzia uma Ford que tinha um grande armazém por baixo do meu acento e trazia ali as coisas. Ovos, batatas e tal nunca faltava. Ali para o pessoal amigo havia sempre. Já não íamos lá ao arroz. Íamos, mas não comíamos. Apanhei lá grandes sustos. Às vezes, topavam-me, a escolta, e faziam-me lá estar horas e horas, com as mãos no ar e eles com o dedo no gatilho. Depois lá vinha o Furriel e os outros amigos lá na Intendência, os indianos, lá salvavam aquilo.
Passei lá das boas. Houve três oficiais portugueses que tentaram fugir. Em Vasco da Gama estavam sempre lá 20, 30 barcos a carregar minério, para as siderurgias, para trazerem de lá para fora. Então, fugiram para um cargueiro italiano lá em Mormugão. O indivíduo do cargueiro deu-lhes de comer e comunicou para o campo que eles estavam lá. Foram lá buscá-los. À gente andámos lá, dois dias e uma noite, sempre em formaturas. Depois de estar uma noite inteira, se alguém se mexia assim, levava uma coronhada logo nas costas. Sofremos ali. A eles fizeram-nos andar a pé, com armas em baioneta e picavam-nos. Ali pelo campo todo para o pessoal ver. Os pés já deitavam sangue e eles a picar.
Sabão não havia. Só havia água lá num tanque porque se ia buscar para ali nuns reboques. Deitavam água nos tanques, a gente ia lá, despia a roupa e lavava-a. Aquilo secava depressa com o calor. Estávamos ali a guardar a roupa, depois de secar metíamos no corpo. Era assim porque não havia sabão, não havia nada. Quando a gente a vestia, depois de a lavar, parecia um pau. Daí a uns três meses foi lá um enviado do Papa é que nos levou umas lâminas, umas Gilletes, sabão, sabonetes e depois já a malta se lavava com o sabão e tal.
A gente passou ali muito mal. Estivemos a viver numa incerteza. Uns dias diziam que nos iam matar, amanhã diziam que nos levavam lá para Bombaim para nos matar. Foi muito difícil pela incerteza que se vivia dentro do campo. Porque corria hoje um boato:
- “Olha, amanhã vão-nos levar para tal sítio vão-nos matar. Amanhã vamos para tal sítio...”
Estávamos tão passados que as pessoas não se importavam de matar, de porrada. Era assim que se vivia dentro do campo de prisioneiros. Muito mal. Estive cinco meses prisioneiro. Acho que ainda passou uns dias. Foi desde 19 de Dezembro de 1961 a, mais ou menos, 15 de Maio.
Houve ordem de libertação em Maio. Eu por acaso fui uma das últimas pessoas a sair de lá, porque eu andei a transportar os meus colegas para o aeroporto. Foram dois aviões fretados a França que nos foram buscar ao Aeroporto de Goa para Carachi, para o Paquistão. Depois foram os barcos portugueses buscar-nos a Carachi. Como se passou aquilo com os oficiais, só havia um que vinha lá ao pé da gente. Eles vinham lá no cimo do campo e a malta corria-os à pedrada e tudo porque eles fizeram-nos sofrer muito ali dentro do campo. Dantes a malta nem ia trabalhar. Depois daquilo acontecer, ia toda a gente trabalhar. Sofremos muito com essa situação. Mas assim que entrámos em Carachi nos barcos, havia logo disciplina militar.
Chegáramos a Alcântara, esse nosso amigo, o Salazar, meteu-nos nuns vagões de mercadorias. Eu tive sorte, fiquei logo ali na estação do Rego porque ia para o TREN Auto lá em Lisboa, mas pessoas que foram para o Porto, para Braga e para Elvas, foram numa coisa dessas de mercadorias deitados ali no chão como cães. Porque ele queria que a gente morresse lá todos. Dizia que era mais bonito para Portugal se a gente tem lá ficado todos que nos termos rendido. Acho que saí da tropa a 25 de Maio.