“Sonho que ainda lá ando a trabalhar”

Tinha aí 12, 13 anos, quando fui para o Ribatejo. Talvez ainda não os tivesse. Fui com um homem que andava aí a arranjar pessoal para lá. Chamávamos aqui um capataz. Íamos aos 20 e às 30 pessoas. Era a malta. Daqui, íamos à Vide. Na Vide, havia um homem que tinha umas mulas. Eram cavalos, mas nós chamávamos-lhe mulas. Puxavam uma carroça, atrás. Ele ia em cima da carroça e nós íamos a pé. Fôramos muita vez a pé dali para Santa Comba para apanharmos o comboio. Às vezes, por esses caminhos, até se nos rompia o calçado que a gente levava. Íamos para cima da tralha que levava nas carroças. Os outros continuavam a pé. Como era a vida... Eu digo mesmo: se começasse a escrever tudo desde o princípio da minha vida, tinha um missal!

No Ribatejo, a vida ainda era pior. Ali para Alenquer, Santarém, Vila Franca, por aquelas terras ali. Conheço aquilo tudo! Surribar terras de metro e meio de altura. Surribar é cavar em profundo. A gente abria um buraco. Começávamos em baixo, quando chegávamos acima já tinha mais de 2 metros ou 3 de altura. Era para muita hora, lá em cima. A gente a cavar a terra com umas picaretas e a botar para trás. Chegava-se de sol a sol, também. Ainda “a manhã vinha de castelo”, já a gente estava levantada para pegarmos ao serviço. Quando nascia o sol, já lá tínhamos de estar. E quando o sol se punha é que saíamos do trabalho.

A comida da gente, naquele tempo, era farinhas amassadas. Farinhas de milho ou de trigo para comermos durante um mês. Era 30 quilos de farinha, litro e meio de azeite e 3 litros de feijão. Se comíamos mais, já tínhamos de ir comprá-lo ou ir pedir ao patrão para nos dar mais comida. Nesse tempo, íamos para lá ganhar 25 tostões por dia. Era ao dia. E tínhamos aquele “comestio” só. Era uma vida ruim! Agora, comem o que querem. Comem um bifinho, comem dois, comem três, comem quatro, comem cinco. Naquele tempo, quando se a gente criou, uma sardinha era dividida por três ou quatro.

Havia domingos que a gente trabalhava para a casa. Diziam eles que era para a casa. Uma ocasião, começámos lá a embirrar todos. Queríamos ir à missa e não queríamos saber de irmos trabalhar. Os patrões deram em dizer, de facto, o domingo, deu Deus para se descansar, não é para se trabalhar. Ao domingo, íamos à missa. No fim da missa, chegávamos à porta do quartel e fazíamos a comida. No fim de fazermos a comida, toca a fazer o baile! Toca a andar! Ainda diverti lá muita gente. Até que horas da noite! Dez, 11 horas. Às 11, o capataz dizia assim:

- “Ó, rapazes! São horas de irem para a cama, que amanhã temos de madrugar.”

Dormíamos lá nuns barracões, de cima de umas esteiras de corra, do feitio quase de cana. As mulheres dormiam num lado e os homens dormiam no outro. Davam-nos aquilo, a gente levava uma manta e dormíamos ali de cima. Enrola na manta e toca andar. Os travesseiros eram os sapatos que a gente trazia. Eram os tamancos. Às vezes, quando a gente se levantava de manhã, até se conheciam nas costas aqueles vergões.

Fazíamos nove meses. No fim de nove meses, vínhamos embora. Estávamos aqui mês e meio e daí tornávamos a abalar. Em Setembro, íamos para as vindimas. No fim de as fazer, cavávamos as vinhas, surribavam terras e uma coisa e outra. E lá andávamos. Chovia a água, apanhávamo-la no corpo. Vinha o sol, enxugava. Lá, não havia onde a gente se aguentar.

Andei lá muitos anos, 30 e tal. Quando me casei, ainda lá andava. E ainda para lá fui alguns anos de casado.

Se a minha mulher quer, eu não estava aqui. Estava entre Alenquer e o Carregado numa quinta. Havia lá um velhote que me dizia:

- “Ó, senhor Homero, você tem de tomar conta de mim. Até lhe ponho isto tudo.”

Tinha dois filhos, mas não queriam saber dele. Um estava para a Inglaterra e o outro estava para a Bélgica. Estava ali o homem sozinho, desorganizado:

- “Ó, senhor Homero, morro aqui à separação. Não há ninguém aqui que tome conta de mim...”

Ainda cheguei a dizer à minha mulher:

- Vamos para o Ribatejo.

- “Eu? Sair do meu pai e da minha mãe? Não saio!”

Ela gostava cá disto. Não deixava o pai e a mãe para ir para outras terras. Mas era melhor lá que aqui. Lá, entrava um tractor, lavrava os terrenos. Aqui são lavrados à mão! Às vezes, até sonho que ainda lá ando a trabalhar. Se tivesse carro, ainda gostava de ir até lá dar uma volta por aquelas quintas onde andei.