Eu levantava-me sempre cedo. A vida cá era dura. Eu trabalhava de tudo e tudo gostava de fazer. Sabia fazer de tudo. A gente começava de novas a ser muito sacrificadas com trabalho. A nossa infância era assim. Quase tudo vivia do mesmo. Era preciso trabalhar muito na fazenda, cavar, ir ao mato, à lenha, ajudar a acartar pedra e outros trabalhos. Tínhamos ovelhas. Davam a lã quando era no tempo de as tosquiar. Davam-nos os borregos, davam leite também. As cabras davam-nos só o leite e os cabritos, que depois a gente vendia. Todos os dias, de manhã e à noite, a gente tirava o leite. Tinha sempre leitinho fresco para fazer os queijos para vender. Uns era para consumo, outros ainda comi, mas a maior parte era só para vender, fazer dinheiro para outras coisas. Que não tínhamos de onde ele viesse mais. Íamos vender em muito lado. Às vezes tinham que andar umas pessoas de Porto Castanheiro à cata deles. Levavam cada cabazada deles! Na minha lembrança, eram as mulheres que cá vinham de Porto Castanheiro e que os levavam. Mas antes de mim, que eu aqui já pouco me lembra, iam-nos vender a São Jorge da Beira, lá para o Cebola, para as Minas da Panasqueira. Era muito longe! Eu nunca lá fui a pé. Já lá passei de carro, mas a pé nunca. Era muito longe. Mas as pessoas iam todas a pé. Às vezes, iam amanhecer à serra com aqueles carregos de queijo para lá vender. Em casa não os comiam! O dinheiro era preciso para tanta coisa. De pequenos, faziam-nos andar com o gado. Quem ia para a escola, ia. Quem não ia, tinha que ir guardar rebanhos por essas serras, descalços. Não havia calçado, não havia nada. Eles não queriam gastar e a gente descalça. Não tínhamos nada. Os primeiros sapatos que tive foram os do casamento. Primeiro, não tinha nada. Só as tamanquitas ou uns chinelinhos. Outros, era a roçar mato, carregar mato e lenha. E descalços, também! A gente, às vezes, levava umas tamancas por aí acima, no caminho, até lá chegar. Em fazendo um molhito, tínhamos que as tirar e pô-las no molho. Vínhamos descalças outra vez para baixo, senão podíamos cair, que elas tombavam. Escorregavam! Então vínhamos assim descalças. Quando era frio, a geada até se sentia a estalar debaixo dos pés. Quando era calor, também não se aguentava dos pés por causa das pedras a escaldar, a ferver. Mas cá era tudo assim, pois não havia para onde ir. Não havia empregos. Tudo se dedicava à terra. Era cavar, semear, sachar, empalhar, regar, até o apanhar. Era uma vida dura. Plantava milho, batata, feijão e pouco mais, cada um em seu terreno. Os terrenos eram muitos e grandes. Era quase sempre a mesma coisa. Cá toda a gente tinha muita fartura de milho. Semeavam muito. Em Março começava-se a semear as batatas num terreno. E depois, em Abril, era o milho e o feijão “piacima”. Os homens só vinham em Setembro e Outubro. Demorava muito tempo para modos de se eles criarem. As batatas demoravam só três meses. Mas o milho e o feijão demoravam muito. Andava a gente um ano, a bem dizer, para se criar o milho e o feijão. E depois tinha que se sachar e regar até se criar. Depois, tinha de se arrancar. Às vezes, as pessoas juntavam-se para as colheitas. Outras vezes, cada um que podia fazer, fazia-o sozinho. Para debulhar à noite, as pessoas juntavam a ajudar uns aos outros. A debulhar eram umas paródias a falar em coisas, mas cantar não. Depois a gente secava o milho numa eira. Eram dois ou três dias conforme os dias fossem. Tínhamos arcas em madeira para guardar o milho. Eram uns celeiros que ficavam dentro das casas e nas lojas. Vinho também tínhamos naquela época. Vinha aquando era o milho. Apanhava-se aquando o milho se apanhava. Era ao mesmo tempo, na mesma altura. Tinha muito ano que se juntava o milho com os cachos de uvas para se apanhar. Era muito trabalho na mesma altura. Por isso é que se debulhava só à noite, pois de dia era para apanhar o milho e os cachos das uvas para fazer o vinho. E o vinho, às vezes, também fazia-se só de noite. Também ia para as cavadas. Também fazia cavadas lá pelos limites, por aqueles giestais, para dar o centeio. E como vivia cá muita gente, as pessoas também se dedicavam àquilo. Não havia onde fossem ganhar dinheiro, então tinham que lutar pela vida na aldeia. Depois, quem precisava chamava e a gente ia para poder ganhar algum dinheiro. Ajudava-se a semear milho, sachar e empalhar com esterco... Era com esterco, com estrume, que empalhava, porque cá as terras são muito empinadas, muito embarreiradas. E tinham de lhe botar para fertilizar a terra.