Lembro-me do meu pai estar a trabalhar em Lisboa. A profissão dele era corticeiro. Depois vinha a Soito da Ruiva de tempos a tempos. Aquilo não era certo, quando havia falhas de trabalho, ele aproveitava e vinha cá para estar umas temporadas também ao pé da minha mãe. Depois regressava outra vez, quando os mandavam chamar. A minha mãe ficou cá em Soito da Ruiva a cultivar as terras, para arranjar o sustento para os filhos. Os ganhos em Lisboa, naquele tempo, eram fracos. Era por isso que eles não levavam para as mulheres, porque lá não se ganhava o suficiente para se pagar uma renda de casa. Fiz a mesma vida que o meu pai, pouco mais ou menos. Também trabalhei fora daqui. Depois dos três meses em que estive nas minas da Panasqueira, houve uns primos meus que me arranjaram trabalho para Lisboa, para a cortiça. A partir daí, hoje nesta fábrica, amanhã naquela. Era assim. Depois fui visitar uns familiares meus da terra, que viviam na zona de Almada, e disseram-me: - “Ó Fontinha, amanhã há descarga ali na Fábrica dos Validos, se quiseres ganhar mais uns tostões? Se fores lá pedir trabalho, eles são capazes de te dar trabalho.” E eu aproveitei. Fui lá pedir trabalho, para carregar os tais batelões de 80 e de 100 quilos. Tive tanta infelicidade que logo, não sei se foi nesse dia ou se foi no outro a seguir, ia com um fardo às costas em cima de uma prancha, para levar para dentro dos barcos, uma tábua larga. Atrás de mim entrou outro também. A tábua balançava, eu levava um balanço o outro que entrou atrás de mim com outro fardo, falseou-me o balanço e lá vou eu para dentro de água. Para dentro de água não, que era terra seca. Portanto, parti o braço. Parti um braço, lá fui para o hospital da Mundial, três meses e meio que eu tive de acidentes. E aí é que foi o mau bocado. Eu já nem tinha esperanças nenhumas do braço vir ao normal. Tanto que depois mandei uma carta para os meus pais e para as minhas irmãs, a dizer que ia ficar aleijado do braço. Como é que eles não ficaram?! Mas depois, com tanto tratamento, massagens e pontas de fogo dentro de um forno eléctrico, a própria senhora que me andava a fazer o tratamento já tinha perdido as esperanças de o meu braço ir ao normal, mas depois felizmente foi. Sabíamos destes trabalhos em Lisboa porque os homens iam passando parte uns aos outros. Naquele tempo, os estudos não eram nenhuns. Só procuravam os trabalhos da cortiça, para andarem a carregar. Não sabiam fazer deveres, não sabiam fazer outra coisa. Iam procurar os trabalhos da cortiça. Comunicavam uns com os outros: - “Olha vai até tal parte que agora parece que há lá muito trabalho. Pode ser que também te dêem trabalho.” Enquanto estive em Lisboa só regressava a Soito da Ruiva quando podia. Vínhamos cá sempre que os patrões nos dispensassem. Por vezes, a gente tinha vontade de vir, mas os patrões: - “Não, agora não, agora não pode ser. Aguarda lá mais um tempo que agora não pode ser.” E tínhamos que aguardar. De maneira que era uma coisa sem limite. Podia ser seis meses, podia ser oito. Às vezes andávamos lá quase um ano. Mantínhamos contacto com a família através de cartas, naquele tempo praticamente era só por cartas. Telefone não havia, os meios de comunicação eram as cartas. Em Lisboa vivíamos todos, o pessoal da minha aldeia, num barracão. Cada um na sua cama, está certo. Tínhamos uma mezinha feita por nós, nuns caixotes, para pôr um fogareiro a petróleo em cima e vivíamos ali todos juntos. Parecia um hospital. Éramos à volta de umas 20 pessoas. Até lhe chamávamos nós a casa da rapaziada. Viviam cá os da aldeia, por vezes até havia homens também de outras aldeias, Sobral Magro, da Moura da Serra a viveram com a gente também. Uns rapazes até ali do Tojo. Sabiam que ali normalmente havia sempre lugar para mais um ou dois. Quando as pessoas não tinham onde ir, iam ter com a rapaziada e lá se arranjava um canto para se pôr mais uma cama. Era assim, os trabalhos eram todos no mesmo ramo. A habitação era dormir todos ao pé uns dos outros. A higiene, por vezes, também era pouca ou nenhuma. Como éramos muitas pessoas a viver juntos, fazíamos uma escala: - “Hoje és tu que varres a casa, amanhã é fulano.” Tínhamos uma escala no papel, na parede: - “Olha que tal dia, quarta-feira, é fulano. À quinta-feira é fulano.” E pronto, eles tinham que ter cuidado pelo menos em varrer a casa. Às vezes, era conforme calhava.