Os terrenos aqui são todos como se fossem degraus, as chamadas quelhadas. Para regar a gente fazia assim: a gente abre uns regos, umas valas, à beira das paredes depois mete a água. Depois a água é toda cortada. Aquilo dá muito trabalho. E não podia regar à-vontade. A água aqui era toda dividida. Uns tinham uma hora, outros tinham duas, outros tinham três, outros um quarto de hora. Era conforme. Estas divisões de água já lá vem do tempo dos nossos pais e avós. Tem a ver com o tamanho do terreno. E ainda hoje é assim. Nós temos os terrenos abandonados, mas sabemos o tempo de água que lá temos. Assim não o podemos perdoar. Às vezes, por causa da água, as pessoas enganavam-se umas às outras. Não me recordo como faziam isso, mas andavam sempre a ralhar. Nós temos aqui um rego de água, que passa aqui à minha porta, e tem água corrente. No Verão passa aqui. Vem lá do ribeiro para a aldeia e passa aqui. Em Agosto ainda passa aqui água. É verdade! Depois onde estão os moinhos passa o ribeiro da Azinheira e aqui dizem que é o ribeiro da Fonte Ribeiro. Os castanheiros rebentavam por aí. As castanhas ficavam perdidas e depois nasciam castanheiros. Cá havia muitos castanheiros e muitas castanhas. Agora não. Queimou-se tudo. Já aos anos que não havia, porque este fogo que veio agora também já tinha vindo há 18 anos e já tinha devorado tudo. Mas agora ainda foi pior, mesmo assim. Quando era miúda, a gente não dormia para ir apanhar as castanhas logo de manhã, assim que vinha muita chuva. Umas cozíamo-las, outras assavam-nas, outras deitavam-nas nuns caniços secavam-nas e ficava a castanha pilada. A gente a isso é que chama a castanha pilada. Depois pisavam as castanhas para se comer. Aqui também havia cultivo de azeitonas. Havia aqui muitas pessoas que curtiam muita azeitona. Punham-nas na água e depois iam-lhe mudando a água. A minha mãe punha cascas de laranja na água. E depois da azeitona estar curtida deitavam-nas na cinza. Depois, lavam-nas bem lavadas e comiam-nas com pão. Eu não gosto. Nunca gostei de azeitonas. Também as não podia comer, nem vê-las! Mas não me fez diferença que não gostava delas. A minha mãe, às vezes, lá curtia uma panelita delas, mas os meus irmãos catavam-lhas todas. Ainda elas estavam a amargar e eles catavam-lhas todas. Havia aí pessoas que tinham azeitonas para todo o ano. Agora não, tudo se acabou. Também faziam azeite. Assim como ainda fazem agora. Este ano tive pouca sorte no meu azeite que não o pude comer. A azeitona foi poucochinha porque as oliveiras queimaram. Só umas ali adiante é que não se queimaram. O meu marido até se aleijou por causa da azeitona. E aqui para baixo a azeitona estava toda podre. Como a minha era pouca tiveram que juntar com outra e o meu azeite não o pude comer. Tenho-o ali todo para deitar fora. Andámos a comprá-lo e não se pode provar. Está com um mau gosto. Só em Pomares é que há um lagar. O azeite não era feito em Soito da Ruiva. Em Pomares é que a azeitona era moída. É mais perto, mas tem noutros mais longe. Eles vinham buscar a azeitona numa camioneta e levavam-na cheia. E enquanto não fossem todas, não traziam cá o azeite. Agora já cá não vêm, a gente tem que ir levá-la, pois tudo se acabou. Eram eles que faziam a divisão do azeite no lagar. Depois, já traziam dividido. Ainda há pouco acabei o meu, já era de há dois anos, agora tenho que o comprar. Que remédio! Andei na escola no Sobral Magro, porque em Soito da Ruiva não havia escola na minha altura. Houve mais tarde. E lembro-me de ser construída. Estava casada há pouco tempo e já tinha a minha filhinha que me morreu. Ainda fui buscar dois sacos de areia lá adiante, ao cimo da Mourisia, para ganhar algum dinheiro. Mas depois fartei-me. Era muito longe. A partir daí houve sempre escola, mas depois não havia professoras ou crianças. Tanto que os meus netos já não andaram nesta escola. Tiveram que ir para Lisboa, para o pé do pai, porque não tínhamos cá escola. Os meus filhos ainda andaram aqui na escola. Mas estivemos aqui dois anos sem escola. É claro que as minhas filhas se atrasaram. Só fizeram o exame em adultas. Nesse tempo andávamos todas a cavar. Era meia tarde quando elas atiravam com a enxada: - “Ó mãe, vamos embora!” E eu ficava sozinha a cavar e elas vinham-se embora. Vinham lanchar e preparavam-se. Era uma alegria para elas, um divertimento irem à escola. No fim de acabar a aula dos miúdos que andavam na escola começava a delas. E elas fizeram as duas o exame da 4ª classe já em adultas. Elas e mais raparigas aí. O meu filho também ainda lá andou na escola. Mas depois teve que ir para Coja. Depois de Coja foi para Lisboa. Aqui só agora é que houve médico. A Comissão é que puxou para cá um posto médico. Às vezes, até vai para dois meses que não vem médico. Mas mesmo assim já é muito bom, porque primeiro não havia nenhum. Tínhamos que ir a pé a Avô para ir ao médico. Demorávamos muito tempo a lá chegar. Era preciso andar bem para chegar a Pomares em duas horas. E de Pomares para Avô era capaz de levar perto de uma hora, porque as curvas são muitas. Naquele tempo não havia carros nem estradas. Além disso, havia aquelas rezinhas mas não prestava para nada. Havia quem fizesse, mas era uma ilusão das pessoas. Então, alguma vez fazia algum bem? Agora é que estou desiludida com essas coisas. Mas isto agora está tudo muito modificado. Muita coisa está diferente. Nós, no Inverno, íamos passar os serões a casa uns dos outros, agora não. Agora ninguém vai para casa de ninguém. À noite tudo se fecha em casa cedo. O pessoal já é poucochinho e já não tem pessoas novas, é tudo pessoas idosas. Eu tinha ali os meus primos na casa do tio Manel Zé. A mulher dele e a outra que morreu muito nova eram como minhas irmãs. Ou eles estavam em nossa casa ou nós na deles. Os meus irmãos eram tão amigos deles que chegaram a pôr um fio no quarto deles na casa da minha mãe, com umas campainhas para que quando precisassem de falar uns aos outros, puxavam por o fio e a campainha tocava lá na casa deles; ou eles puxavam e a campainha tocava na nossa casa. As pessoas eram muito unidas, mais do que agora. Agora não, há cá uns que se sentem bem sozinhos.