Ainda houve duas crianças que eu salvei no meio da minha força de vontade. Uma em Lisboa e outra aqui na Benfeita. Uma em Lisboa porque eu andava a dar Dreia à minha filha. O médico perguntou quando ela nasceu lá em Lisboa, se eu queria uma filha com saúde e magrinha ou se queria uma filha gorda e sem saúde. Era um médico mulato, mas era uma maravilha de um médico. Era de uma policlínica. Digo eu:
- Antes quero ter uma filha magra e com saúde. Portanto eu pago Dreia.
Era um leite que vinha de fora. Eu pagava para dar a ela.
Nasceu uma miúda lá de uma vizinha minha, mas que era rica e quando viram que eu andava a tratar da minha, pediram-me. Ela adoeceu. Vieram-me pedir para eu ir guiar a miúda dela com o Dreia. Eu disse:
- Vocês quando comprarem o leite que não seja azedo. Cheiram-no primeiro e depois dão à menina. Se estiver o cheiro a azedo não dêem à menina que pode apanhar uma doença grande. De maneira que eu andei a guiar a miúda. Passado uns quatro meses de eu andar a guiar a miúda, já não andava a tratar dela. Era um quintal em baixo, um quintal muito grande, com fraldas e tudo, muita roupa de criança suja e já levavam a criança para rua e digo eu:
- Meu Deus o que é que se passa com aquela criança?
Eu andava a guia-la e agora passou um tempo que não me disseram nada. Quando ela já estava a ganhar carninha e a menina assim.
Digo assim:
- Isto passa-se qualquer coisa, deixa ver o que é que elas....
Vou a perguntar, a menina tinha uma doença que apanhou porque compraram leite azedo deram à menina. Queriam ser grandes e serem eles a dirigir aquilo, mas não conseguiram dirigir como devia ser. Diz assim:
- Então como é que está a menina?
- “A menina está quase a morrer. Já está desenganada dos médicos.”
Eu então fui lá ver a menina. Fui lá ver menina, o quarto só cheirava mal e azedo e às fezes da criança. Quer dizer, era uma criança que a gente pegava nela e ela vazava tudo, tudo para o chão. As fezes. E a menina com os olhos encovados, já todos negros. Eu digo assim:
- Ai ao que deixaram chegar esta menina. Então agora arranjem-me um eucalipto.
E o fogão, era um fogão daqueles que dão vazão à bomba. Os fogões de petróleo.
- Arranjem-me um fogão de petróleo e um tacho com água a ferver e eucalipto e abram a janela.
Começaram logo a dizer que eu ia fazer bruxedo. Assim:
-Eu não sou bruxa nenhuma. É para desinfectar o ar que vocês têm isto tudo que é um ar até para os que têm saúde isto prejudica.
Chorava o pai, chorava a mãe, o avô e a avó. Tudo chorava porque a menina estava a acabar. Ficou lá aquilo a arder e todos os dias queimava um eucalipto para aquele cheiro assim.
- Eu agora vou levar ao meu médico que anda com a minha filha que é muito bom que é mulato é muito bom.
- “Ai se fizesse esse favor.”
- Vou lá com ela, mas tem que me dar uma fralda com a sujidade da menina. Ela vazava, mas sempre ficava aquele coiso... Têm que me dar o leite que lhe deram, os medicamentos que o médico onde foram...
Receitaram até um remédio de cerveja lá tinham para a criança. Para um anjinho que tinha nascido há pouco. Disse assim:
- Levem estes medicamentos todos que ele exige isto. Os medicamentos que a menina tomou, a fralda, o leite. Tem que levar isto tudo.
Cheguei ao médico diz ele assim:
- “Então onde é que a senhora foi buscar?... A senhora não tinha coisa pior que isto para me trazer?”
- Ó senhor doutor, pois por eu saber que a menina estava muito mal e que o senhor doutor é um belíssimo médico, eu trouxe a menina para ver se o senhor doutor fazia alguma coisa dela.
Foi pesá-la, a menina tinha um peso desgraçado. Não pesava quase nada. Ele ficou pasmado.
- “Olhe eu não vou garantir, mas para cuidar da menina é preciso haver duas pessoas muito interessadas em curar a menina, porque é medicamentos durante a noite.”
Eu disse:
- Isso o senhor doutor esteja descansado. Ela tem lá um avô e tem lá um pai que se eles não fizessem nada pela menina não havia quem fizesse. Estão lá para ficar toda a noite. Portanto o senhor doutor faz favor de arranjar.
- Mas não diga nada à mãe, eu é que levo tudo explicado como é que eles hão-de fazer que é para dar a ideia a eles.
Assim foi. Cheguei lá a casa, chovia água se Deus a dava. Eu com medo do meu marido que ele estava na loja a trabalhar nessa altura, na loja de onde eu saí, se me visse ali o casaco. Ficou em casa dos avós dela no quintal, o casaco toda a noite ao pé do fumeiro para secar. Para o meu marido não saber que eu tinha ido com a menina. Porque começava logo:
- Tinhas que ir, foste-te encharcar, foste assim.
Era um banzé e assim ele não soube de nada. Fui avisar o pai da menina e o avô. Trataram aquilo como devia de ser e a menina foi curada. Quer dizer, começaram ali no tratamento. Diz ele:
- “A menina não sei se ela tem muita vida. Porque vai ser muito difícil. Não me responsabilizo por aquilo que ela há-de viver, mas se a senhora diz que é gente com...”
- É sim, senhor doutor.
Assim foi. Eu vi a menina. A menina começou a ganhar carninha e a ganhar peso e eu fui lá com ela. Fui lá com ela e quando o médico viu diz ele assim:
- “Sim senhor. Olhe que nunca esperei que esta criança conseguisse melhorar.”
Mas eram umas pessoas tão ingratas que depois de verem que a filha estava salva nunca mais me ligaram. Nunca mais me ligaram.