O dono da frutaria andava à procura de uma empregada para tomar conta da caixa enquanto ele e a mulher iam à terra. Ele tinha um empregado e esse empregado mais tarde foi o meu marido. Não é que eu gostasse dele, mas é o seguinte, eu namorava com um rapaz que era da Escola Agrícola, andava a tirar engenheiro agrícola. Ele começou-me a namorar quando eu tinha 16 anos. E namorei com ele cinco anos. Tinha namorado, mas naquela altura tinha-me zangado com ele. Eu estava na costureira e minha patroa pediu-me para eu levar uma caixa para entregar num restaurante perto da estação dos comboios em Lisboa na Avenida da Liberdade, que era precisa para fazer uma festa e aquela senhora queria aquele vestido. Eu disse que levava.
- “Tu não és da entrega filha, mas vai lá entregar. A gente paga-te o eléctrico e tu vais lá entregar.”
Eu fui para entregar. Depois vinha a passar uma prima dele, desse tal rapaz. Uma prima dele parou e viu. Ela era corista do teatro e vinha com um rapaz. Diz ela:
- “Conheces o meu primo Nandinho?”
Ela queria o primo, mas o primo não a queria a ela.
- Conheço.
- “Que achas?”
- “Mas o que é que esta menina tem a ver com o teu primo Nandinho? ” - diz o rapaz que ia com ela.
- “Essa menina o que tem a ver? É para veres, ela é uma simples costureira e ele é um rapaz que está-se a formar. É um rapaz de estudos.”
- “Isso não tira nada. Ela de feia não tem nada e as qualidades dela só o rapaz é que saberá compreender.”
Eu fiquei nervosa. Ela perguntou se ele não o achava mal empregado em mim. Eu não achava que era uma pessoa normal, se ele não sabia que não era mal empregado em mim. Namorávamos já há tempos, também não havia novidade nenhuma. Cheguei casa, estávamos já a começar a tratar dos papéis para o casamento. Ele já tinha tratado dos dele. Estava à espera que eu tratasse. Ele tinha um tio que era militar e na altura tinham que ir fazer os três meses à tropa, cumprir aquilo. Ele foi para lá para cumprir esses três meses. Eram todos forçados a irem. Os que estudavam tinham que ir fazer três meses de tropa. Ele foi também. Justamente nesse infeliz dia manda-me uma carta a dizer para eu tratar dos papéis que ele já tinha tratado dos dele. Eu quando vi aquilo rasguei. Era daquelas cartas que vinham inteiras, que tinham duas folhas cortadas ao meio e vinha assim dentro do envelope. Eu rasguei uma parte que ele só tinha escrito à pressa uma parte e a outra parte ficou em branco. Eu não tinha lá carta, agarrei nessa parte e escrevi para ele:
“Por motivos que não te posso explicar, entre nós tudo acabado.”
Foi a minha sentença. Ele recebeu aquele choque de tal maneira que os três meses que ele tinha que estar lá a cumprir, passou-os na enfermaria do hospital. Foi um choque que ele recebeu muito grande. Ele gostava muito de mim. Cinco anos de namoro a gente andou ali.
Conhecia o meu marido, ele estava lá na frutaria. Conheci-o antes. Uns dias antes, até um mês ou dois. Eu fui para lá trabalhar, não ia para lá para namorar com ninguém. Na altura eu não namorava com ele, mas o meu marido tinha uma filha que era inválida. Ela tinha 7 anos. Morre-lhe a mulher, ele ficou com a filha e ficou ali entre aquele espectáculo e pediu-me se eu não me importava de ser mãe da filha dele. Tanta gente, tantos primos, tanta gente tinha e não tinha quem tomasse conta dela. Digo assim:
-Ele não está bom da cabeça! Era o que me faltava.
E não quis aceitar. Tive vários pretendentes depois disso. Não sei porquê gostavam de mim. Não era por ser leviana, não era por nada, mas ouviam a pessoa como ela fazia e gostavam de mim. Não tinha culpa. Não era que lhes desse sorte porque eu era muito reservada.
Acontece que apresenta-se-me uma apendicite e eu tive que ir para uma clínica, mas um cliente lá da frutaria é que me arranjou para ir para essa clínica. Era um dos senhores donos de um barco de pesca daquela pesca grossa, daqueles peixes mais seleccionados. Ele então o que é que fez? Arranjou para internar-me lá. E eu fui. A mulher dele, se ele tem falado a esse senhor ela também tinha ido para lá, mas ele não falou. Acontece que o senhor foi por alta recriação e do patrão lá da loja, é que fez isso. Eu tomava conta da caixa. Quando vinha o dinheiro era eu que fazia os pagamentos e tudo, depois aconteceu aquilo... Eu trabalhava ainda lá e fiquei ainda a trabalhar um tempo, até a gente se casar. Mas eu não pensava sequer numa coisa dessas, nem de ir para o meu marido. Como eu adoeci, estive lá internada. Estive muito mal, porque já ia muito grave a apendicite. Então era já uma solução que eles estavam já cheios de medo e eu fui para lá. Fui para lá para a clínica e ele então nem almoçava, nem jantava, para ir para ao pé de mim as horas todas que podia estar. Era à tarde e era à noite estava ali. Era até mandar chamar. E chorava, chorava, chorava, porque eu estive em estado de coma porque era uma ráquia. Naquela altura davam uma injecção na espinha para adormecer, mas em vez de tirarem o liquido que tinham posto, não tiraram. Nem me podiam pôr a mão na cama porque eu tremia toda, toda, toda. Aquilo era uma aflição. Ele chorava, chorava como uma criança. E ele ia todo vestido de preto pela mulher e barba por fazer e chorava. As doentes diziam assim:
- “Esse senhor que está aí ao pé de si - quando eu comecei a ter mais lucidez e tinha saído do estado de coma - é seu paizinho?”
- Não senhor.
- “Então é seu irmão?”
- Não senhor.
- “É seu familar?”
- Não senhor.
- “Não é seu parente?”
- Não senhor.
- “Então o que ele é?”
- É um colega de trabalho.
- “Olhe, então se ele é um colega de trabalho admira-me muito porque ao fim ao cabo não é um colega de trabalho que está aí nessa choradeira todos os dias.”
Porque ele via-me mal e chorava. Estava com medo que eu morresse. Ele esteve sempre ali. Sempre, sempre, sempre à minha cabeceira. Eu estive lá internada depois da operação, estive à razão de um mês e meio ali na clínica. Passado um mês e meio eu tinha que sair e ele torna-me a falar na mesma coisa. Eu fiquei a pensar naquilo. A minha mãe não me foi lá ver vez nenhuma, ele foi a única pessoa que me foi ali ver.