Vim para a Benfeita devia ter os meus 24. Eu lá em Lisboa estive pouco tempo. Trabalhei sempre, sempre, sempre na costura. De dia e de noite, mas tinha uma força e tinha uma vontade louca de vencer a minha costura que passou a vir muita gente de um lado e do outro. Tinha gente de Coimbra, tinha de gente de Arganil. Vinha tudo ali. Até da serra vinham. E eu fui-me dedicando àquilo. Depois tinha um cérebro... Nem que tinha uma trouxa, punha ali tudo, das clientes. Não escrevia de quem era, mas eu sabia de quem era aquilo tudo. Fui ganhando prática por mim própria. Fui criando as minhas filhas. Fiz os casamentos delas sem vergonha do mundo e aturei o meu marido até ele morrer. Nunca desconsiderei o meu marido, apesar de ele ser um humilde trabalhador, rachador. Era rachador de lenha, mas isso nem para os copos dele dava. Tratei dele sempre até à hora da morte com o carinho com que havia de tratar lá em casa. Não digo que uma vez por outra ele não gritasse com qualquer coisa, mas era o feitio dele. Era um homem criado aqui na aldeia.
Quando vim da cidade para a Benfeita parecia que vinha para um poço sem fundo. Julgava eu que vinha para um poço sem fundo. E as pessoas cá estavam muito atrasadas. As primeiras saias que apareceram de fecho e tudo foi por mim. E as blusas, que elas aqui eram uma saloiada completa. Comecei a fazer aquele progresso. Chegaram as mulheres da Benfeita a terem inveja de mim porque os maridos diziam:
- “Uma costureira, ai a ”Modista“.”
Puseram-me o nome de “Modista”.
- “Olha para ela. Vem ali tudo.”
E elas como me gabavam...
- “O Albano é que teve sorte.”
Então ganharam-me todas uma inveja terrível. Ainda sofri esse ataque de invejas. Mas eu tudo suportei. Não me incomodei. Por acaso também ninguém nunca me maltratou. Respeitavam-me, mas havia muita inveja, muita inveja.
Para homens não. Fazia só para mulheres e para crianças. Uma saia, uma blusa era aí uns 10 escudos. Era 5 escudos, 10 escudos. Era conforme o feitio da saia. Fazia dos tecidos que elas me apresentavam. Eu não vendia. Elas traziam o tecido. Iam até à feira de Mont'Alto de noite para não levarem as coisas umas iguais às outras. Iam ao Mont'Alto e passavam às vezes à minha porta aí à meia-noite para entregarem para não saberem umas das outras, para eu não dizer. Para não se fazerem o mesmo feitio nem nada. Era assim. Quando eram os dias de festas de lá. Vinham todas as que eram do Sardal e assim dos Pardieiros, vinham-me entregar a obra sempre de noite. E o Monte Frio era a mesma coisa. Era tudo escondido que era para umas não saberem o que as outras vestiam. E eu lá atendia todas.
Gostavam do meu trabalho. Havia até uma cliente em Coimbra que o marido era engenheiro. Ela era uma senhora toda como devia ser e tinha muita gente conhecida, assim médicos. Ela pedia-me para eu ir lá passar 15 dias. Eu disse assim:
-Se o meu marido deixar. Sem ordem do meu marido não vou.
Ia para lá passar 15 dias, para talhar e provar. As esposas deles que nunca tinham pegado numa agulha, estavam lá numa sala e eu ensinava-as a passar marcações e tudo aquilo era uma alegria. Os maridos os doutores estavam no escritório do senhor engenheiro, a fazerem uma pândega todos juntos. O dia que lá ia, aquilo era uma alegria para Coimbra, para aquela gente que tinha as senhoras que lá iam. Era às quatro e cinco. Estavam ali assim todas. Eu talhava e provava. Nunca me deixava vir sem coisas para as minhas filhas e tinha que ir à praça comprar nem que fosse carne ou peixe para trazer para as minhas filhas. Era uma senhora muito minha amiga. Até o filho dela que é doutor. Foi ela que baptizou a minha neta, a minha Elsa Maria. Foi ele ser o padrinho por gostar tanto daquela animação e conheci-o ali de pequenino e tudo e depois foi crescendo. E eu ali trabalhei. Depois vim para casa. Quando eu estava a arranjar a mala para me vir embora para casa:
- “Isto até me faz nervoso. Esta senhora trataram-na cá mal com certeza.”
Não me deixavam levar nada para lá. Não me deixavam pagar nada. Davam-me almoço e jantar e lanche. Eu ali a trabalhar em casa dela e não admitia que eu não levasse nada pela obra dela. Tinha uma filha que tinha uma coisa no sangue, também um mal qualquer, chamavam-lhe a Zézinha. E eu dizia:
- Então mas não me vai proibir de fazer trabalho para a Zézinha e desse não levo nada. Pode estar descansada, nem que a senhora não me deixe cá vir mais, mas eu para essa não lhe levo nada. Mas a ela não admitia que eu não levasse nada. Tinha que levar dinheiro. Assim vivi até o meu marido morrer.