Quase que nasci dentro do balcão. Comecei a trabalhar novita. Não é como agora. Agora, são todos uns calões. A minha mãe tinha os filhos de dois em dois anos. Temos diferença uns dos outros de dois anos. E eu era a mais velha das raparigas. A minha irmã andava mais por fora. Andava na fazenda, ia regar, tínhamos as cabritas e lá andava nessa vida. Mas chegava a casa, não fazia nada! Dizia:
- “Olha, trabalha tu que ficas em casa! Eu já venho farta de trabalhar de fora.”
E era assim. Às vezes, aos domingos, ela estava na janela - que a minha irmã é muito bonita - a ver quem é que passava para a missa. E a Adelina é que estava sempre na loja. Tinha que lhe fazer o comer e lavar os pratos. Ao domingo tínhamos muita freguesia e, às vezes, fazia-se 400 escudos, 500 escudos. Não é como agora. Quando se fazia 1000 escudos, já uma pessoa ficava toda contente. Era assim o meu pai:
- “Olha, amanhã já vem um dinheirinho bom para levar para Coimbra. Já vou ou comprar isto ou comprar aquilo.”
Nessa altura, vinham cá os ourives de Tondela, de Tonda, daqueles lados. Andavam de bicicleta de terra em terra a vender o ouro. Iam ao Monte Frio, iam à Relva Velha, Pardieiros. Até do Caratão chegavam a vir. Iam sempre para aproveitar a casa do meu pai. Pois, não havia cá quem. Como tinha comércio, o meu pai é que dava a comida e eles pagavam. Mas era tudo barato. Então, comiam aqui uma refeição por 200 escudos, 300 escudos. Que era isso? E eu é que fazia a comida. Eles gostavam bem do meu comer! Eu estava sempre em casa, eu é que dominava, é que dava as leis. Às vezes, os meus irmãos chegavam a casa:
- “Ó Adelina! Quero comer!”
Digo-lhe eu assim:
- Então, onde é que eu tenho o comer feito? Para estar à loja, não posso estar noutro lado!
Um dia, até ia partindo o nariz a um irmão meu com uma colher de pau. Ele chateou-me tanto, tanto, tanto. Eu, para estar na loja, não podia estar a fazer o comer. Não havia horários de fechar as portas. O comércio estava sempre aberto. Depois, eles chegavam. O que é que eles iam comer? Pegavam num bocado de pão de milho e num bocado de bacalhau cru - que, graças a Deus, havia sempre muito bacalhau -, iam à arca e tiravam um bocado de presunto. Levavam aquilo no pão e comiam. Depois, ao meio-dia, já uma pessoa tinha mais tempo. Já comiam e iam descansados. Mas à noite, anda Adelina, torna a fazer o comer. De noute, também tínhamos que fazer a vida, porque ao outro dia havia mais. No tempo da azeitona, tinha que se ir cedo e já levavam o comer aviado. Só no tempo das sementeiras, quando é muito forte o calor, é que uma pessoa não trabalhava.
Eu não brincava. Onde é que eu tinha tempo? Era sempre a trabalhar. Havia sempre que fazer. Onde é que o meu pai era desses? Mas fiz o meu enxoval. O que é, não é como agora. Fazíamos à luz da candeia, da vela, do candeeirozinho de petróleo. E víamos bem, graças a Deus. Éramos, às vezes, quatro e cinco pessoas em volta da mesa. Começávamos novitas já a pensar no futuro. Íamos à peça. Tirávamos um lençol, tirávamos as almofadas. Às vezes, quando as peças eram assim jeitosas, também tirávamos uma toalha para limpar o rosto. Graças a Deus, tenho a minha casa cheia e as malinhas todas cheias de tudo quanto é bom. Também já tive duas heranças. Tive herança da minha mãe. Só que a minha mãe não era assim de tirar muita coisa, porque tinha a loja. E tinha uma prima minha que nos deixou alguma coisinha. Vivia ali na praça. Agora, até lá estão os ingleses. Vendemos a casa. Ah, seja o que for pertence-nos. Também estivemos a olhar por a dona muito tempo. Dormimos, às vezes, até no chão, porque ela não queria ir para a cama. Dormíamos na cozinha. Ainda nos deixou alguma coisinha e pagava sempre o serviço que a gente fazia.